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quinta-feira, julho 20, 2006

A língua girava no céu da boca

Por Carlos Drummond de Andrade

A língua girava no céu da boca. Girava! Eram duas bocas, no céu único.

O sexo desprendera-se de sua fundação, errante imprimia-nos seus traços de cobre. Eu, ela, elaeu.

Os dois nos movíamos possuídos, trespassados, eleu. A posse não resultava de ação e doação, nem nos somava. Consumia-nos em piscina de aniquilamento. Soltos, fálus e vulva no espaço cristalino, vulva e fálus em fogo, em núpcia, emancipados de nós.

A custo nossos corpos, içados do gelatinoso jazigo, se restituíram à consciência. O sexo reintegrou-se. A vida repontou: a vida menor.

Extraído do livro "O amor natural", Editora Record – RJ, 1992, pág. 29.
Ilustração: Caco Xavier

quarta-feira, julho 19, 2006


Fiz um buraco e passei para o lado de cá.
Agora não me vês, mas eu estou aqui. E tudo vejo. Passei para dentro de ti.
Percorro as inúmeras salas do teu consciente, mas não encontro nada que me diga respeito. Nem um pensamento. Nem uma emoção. Onde me guardaste tu?
Vou partir à descoberta de quem és, de como és. (Será que te conheço?) Mas primeiro quero encontrar-me, ver-me no espelho dos teus pensamentos. Aqueles que nunca me contas. Onde me guardas tu, que não me vejo?
Passei para o lado de cá e vou procurar o teu armário dos sonhos. Vou abrir todas as portas, deixar que caia pelo chão tudo o que não tens arrumado. Será que encontrarei coisas minhas nessa desarrumação? Será aí que me guardas? No tumulto das coisas que não queremos ou não sabemos como arrumar? Mas o que já abri e espreitei encontra-se arrumado. Milimetricamente arrumado. E não me vejo nessas gavetas de pensamentos. Não me vejo nessas caixas de sonhos. Onde me arrumaste? Em que lugar escuro me escondeste?
Sabes, fiz um buraco e passei para dentro de ti. Como se me fosse essencial ver-me por dentro de ti. Descobrir-me pelos teus olhos, pelas tuas palavras. Nos pensamentos, mesmo nos mais obscuros, nos mais obscenos. Percorro o caminho dos teus sonhos, tropeço em alguns de que te esqueceste, espalhados. Em alguns recantos, como plasmas, vejo o caminhar daqueles que acarinhas e vais construindo. Mas não me vejo em lugar nenhum. Nenhum. Quem serei, afinal, que não me reconheço?